22 de novembro de 2011

Entre palavras...

    Semana passada, li este texto que compartilho com vocês. Vale a pena refletir sobre nossos pensamentos e falas, muitas vezes ditas de forma automática sem levar em conta o interlocutor.




O Insustentável Preconceito do Ser
 ( Rosana Jatobá - advogada, jornalista)

   " Era o admirável mundo novo! Recém-chegada de Salvador, vinha a convite de uma emissora de TV, para a qual já trabalhava como repórter. Solícitos, os colegas da redação paulistana se empenhavam em promover e indicar os melhores programas de lazer e cultura, onde eu abastecia a alma de prazer e o intelecto de novos conhecimentos.
   Era o admirável mundo civilizado! Mentes abertas com alto nível de educação formal. No entanto, logo percebi o ruído no discurso:
- Recomendo um passeio pelo nosso “Central Park”, disse um repórter. Mas evite ir ao Ibirapuera nos domingos, porque é uma baianada só!
-Então estarei em casa, repliquei ironicamente.
-Ai, desculpa, não quis te ofender. É força de expressão. Tô falando de um tipo de gente.
-A gente que ajudou a construir as ruas e pontes, e a levantar os prédios da capital paulista?
-Sim, quer dizer, não! Me refiro às pessoas mal-educadas, que falam alto e fazem “farofa” no parque.
-Desculpe, mas outro dia vi um paulistano que, silenciosamente, abriu a janela do carro e atirou uma caixa de sapatos.
-Não me leve a mal, não tenho preconceitos contra os baianos. Aliás, adoro a sua terra, seu jeito de falar….
   De fato, percebo que não existe a intenção de magoar. São palavras ou expressões que , de tão arraigadas, passam despercebidas, mas carregam o flagelo do preconceito. Preconceito velado, o que é pior, porque não mostra a cara, não se assume como tal. Difícil combater um inimigo disfarçado.
   Descobri que no Rio de Janeiro, a pecha recai sobre os “Paraíba”, que, aliás, podem ser qualquer nordestino. Com ou sem a “Cabeça chata”, outra denominação usada no Sudeste para quem nasce no Nordeste.
   Na Bahia, a herança escravocrata até hoje reproduz gestos e palavras que segregam. Já testemunhei pessoas esfregando o dedo indicador no braço, para se referir a um negro, como se a cor do sujeito explicasse uma atitude censurável.
   Numa das conversas que tive com a jornalista Miriam Leitão, ela comentava:
-O Brasil gosta de se imaginar como uma democracia racial, mas isso é uma ilusão. Nós temos uma marcha de carnaval, feita há 40 anos, cantada até hoje. E ela é terrível. Os brancos nunca pensam no que estão cantando. A letra diz o seguinte:
O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, quero o teu amor”.
  “É ofensivo”, diz Miriam. Como a cor de alguém poderia contaminar, como se fosse doença? E as pessoas nunca percebem.
   A expressão “pé na cozinha”, para designar a ascendência africana, é a mais comum de todas, e também dita sem o menor constragimento. É o retorno à mentalidade escravocrata, reproduzindo as mazelas da senzala.
   O cronista Rubem Alves publicou esta semana na Folha de São Paulo um artigo no qual ressalta:
Palavras não são inocentes, elas são armas que os poderosos usam para ferir e dominar os fracos. Os brancos norte-americanos inventaram a palavra “niger”para humilhar os negros. Criaram uma brincadeira que tinha um versinho assim:
“Eeny, meeny, miny, moe, catch a niger by the toe”…que quer dizer, agarre um crioulo pelo dedão do pé (aqui no Brasil, quando se quer diminuir um negro, usa-se a palavra crioulo).
Em denúncia a esse uso ofensivo da palavra , os negros cunharam o slogan “black is beautiful”. Daí surgiu a linguagem politicamente correta. A regra fundamental dessa linguagem é nunca usar uma palavra que humilhe, discrimine ou zombe de alguém.
   Será que na era Obama vão inventar “Pé na Presidência”, para se referir aos negros e mulatos americanos de hoje?
   A origem social é outro fator que gera comentários tidos como “inofensivos”, mas cruéis. A Nação que deveria se orgulhar de sua mobilidade social, é a mesma que  picha o próprio Presidente de torneiro mecânico, semi-analfabeto. Com relação aos empregados domésticos, já cheguei a ouvir:
- A minha “criadagem” não entra pelo elevador social !
  E a complacência com relação aos chamamentos, insultos, por vezes humilhantes, dirigidos aos homossexuais ? Os termos bicha, bichona, frutinha, biba, “viado”, maricona, boiola e uma infinidade de apelidos, despertam risadas. Quem se importa com o potencial ofensivo?
  Mulher é rainha no dia oito de março. Quando se atreve a encarar o trânsito, e desagrada o código masculino, ouve frequentemente:
- Só podia ser mulher! Ei, dona Maria, seu lugar é no tanque!
  Dependendo do tom do cabelo, demonstrações de desinformação ou falta de inteligência, são imediatamente imputadas a um certo tipo feminino:
-Só podia ser loira!
Se a forma de administrar o próprio dinheiro é poupar muito e gastar pouco:
- Só podia ser judeu!
   A mesma superficialidade em abordar as características de um povo se aplica aos árabes. Aqui, todos eles viram turcos. Quem acumula quilos extras é motivo de chacota do tipo: rolha de poço, polpeta, almôndega, baleia …
  Gosto muito do provérbio bíblico, legado do Cristianismo: “O mal não é o que entra, mas o que sai da boca do homem”.
  Invoco também a doutrina da Física Quântica, que confere às palavras o poder de ratificar ou transformar a realidade. São partículas de energia tecendo as teias do comportamento humano.
  A liberdade de escolha e a tolerância das diferenças resumem o Princípio da Igualdade, sem o qual nenhuma sociedade pode ser Sustentável.
 O preconceito nas entrelinhas é perigoso, porque , em doses homeopáticas, reforça os estigmas e aprofunda os abismos entre os cidadãos. Revela a ignorância e alimenta o monstro da maldade.
  Até que um dia um trabalhador perde o emprego, se torna um alcóolatra, passa a viver nas ruas e amanhece carbonizado:
-Só podia ser mendigo!
  No outro dia, o motim toma conta da prisão, a polícia invade, mata 111 detentos, e nem a canção do Caetano Veloso é capaz de comover:
-Só podia ser bandido!
  Somos nós os responsáveis pela construção do ideal de civilidade aqui em São Paulo, no Rio, na Bahia, em qualquer lugar do mundo. É a consciência do valor de cada pessoa que eleva a raça humana e aflora o que temos de melhor para dizer uns aos outros."
                                                                     
    E como, um dia, escreveu meu amigo Aldo Cordeiro:

   " Orgulho de ser...qualquer coisa além de seres humanos, serve pra quê? Pra mim, basta isso, ser igual a todos na espécie e único na apreensão do mundo, na integração com a vida. Não entendo os orgulhos. Da mesma forma, não vejo orgulho em ser nordestino ou carioca. Apenas nascemos em lugares diferentes, cada um com suas belezas e seus problemas. Nos achamos seres bonitos porque nosso cérebro desenvolveu a capacidade de catalogar entre o feio e o bonito. Os gatos são bonitos porque achamos. Pra eles são simplesmente gatos, independente de gays ou hetero, nordestinos ou cariocas, muçulmanos ou judeus, pretos ou brancos".

    Pois é...

Abraço fraterno,

Aline Caldas


4 comentários:

  1. Esse texto expõe a realidade.
    E nós, muitas vezes agimos assim.
    Julgamos, discriminamos muitas vezes de forma automática e muitas vezes de forma deliberada.
    Falta respeito pelo outro, falta nos enxergarmos no outro.
    Esse outro que é nosso irmão espiritual, que faz parte da única raça a que pertencemos: a humana.
    O outro somos nós.
    Recomendo que assistam ao documentário “Olhos Azuis”, da professora Jane Elliott: http://www.youtube.com/watch?v=jx95Hj7VYj8&feature=related
    Transcrevo a frase que foi citada no documentário. Frase dita por um ministro luterano no final da segunda guerra mundial enquanto limpavam os campos de concentração:
    “Quando se voltaram contra os judeus eu não era judeu e não fiz nada.
    Quando se voltaram contra os homossexuais eu não era homossexual, não fiz nada
    Voltaram-se contra os ciganos e não fiz nada
    Quando se voltaram contra mim...
    Não havia ninguém para me defender.”

    Quando nos omitimos somos coniventes e de alguma forma acabaremos vítimas da nossa omissão.
    Temos que aprender a caminhar juntos, como irmãos que somos.
    Beijos

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  2. RECEBIDO POR E-MAIL
    De: Luiz Maia
    Para: alinecalldas@yahoo.com.br
    Enviadas: Quarta-feira, 23 de Novembro de 2011 15:02

    Aline,

    Você acertou ao compartilhar este texto com os amigos. Vale à pena refletir mesmo. Interessante frisar que em 1970, quando fui morar em São Paulo, lembro-me bem que erámos de fato classificados de "baianos", um sutil preconceito contra os nordestinos. No caso do mineiro era o "baiano que ficou pelo caminho". Morando no Rio de Janeiro escutei os cariocas nos taxando de "paraíbas"... Uma graça. Pelo menos os assuntos que se referem à Etnia, Religião, Futebol e Política serão sempre abordados por este viés - temas recorrentes do preconceito desde que o mundo é mundo. É preciso saber lidar com esses estereótipos.

    Um beijo!
    Luiz

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  3. Contra todo tipo de preconceito, belo compartilhamento amiga!

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  4. @ Alba: Concordo contigo, quando nos descobrirmos humanos, na essência, certamente seremos melhores e veremos o outro como um irmão (que é!).

    @ Luiz: É, poeta, é preciso saber lidar sim...

    @ Andie: Em nome do HUMANO em nós =)

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